Domingo, dia 18 de novembro de 2012, foi um dia diferente. Não posso dizer que tenha sido triste, tampouco alegre. Foi diferente porque inaugurou-se uma presença nova.
Desde que nasci, intuitivamente, imaginava esse dia. Não me lembro concretamente do Sr. Beethoven Wermelinger Lengruber, meu avô, ainda trabalhando e tocando piston, cuidando do carro e da casa. Mas acho que ainda sinto seu toque amável no rosto do neto recém nascido.
Algumas memórias, às vezes, me pegam de surpresa: lembro-me, por exemplo, de um dia ensolarado em que uma mão forte abria pequenas covas e eu deixava cair sementes. Sei que fazem a sombra de quem chega ao sítio “Macaco”. São os ciprestes que “meu neto me ajudou a plantar!”.
Vejo com estanha clareza uma viagem de caminhão. A Mercedez 608 estava ainda nova, quando fomos juntos comprar uma égua! O medo me possuía com tanta presença que a única segurança era tê-lo ao meu lado distraindo-me até a chegada ao destino.
Do que me lembro com nitidez foi o dia em que parou um carro estranho à porta do sobrado e homens diferentes entraram com uma maca e puseram sobre a cama do quarto um homem diferente.
Tive medo de entrar lá porque não se parecia com aquele jovial avô que trazia sempre um chocolate no bolso. Não era o mesmo que, agachado ao chão, me acompanhava nas primeiras aulas da auto escola numa motoca barulhenta. Não era o mesmo sorriso do dia que me trouxe uma cachorrinha de presente.
Era uma pessoa diferente. Estava debilitado; olhos fechados e corpo retorcido.
Entretanto, o medo foi dando espaço à curiosidade e fui chegando mais perto. Até que me vi, novamente, aconchegado ao seu lado, deitado por entre suas cobertas, chamando-o de “pai” e ouvindo palavras que nunca deixaram de ecoar uma satisfação inigualável: “esse é o filho querido do pai”.
Os anos foram passando e fui acompanhando aquela nova vida daquele jovem homem que o destino fizera velho de um dia para o outro. Cada visita que nossa casa recebia trazia uma estória diferente. Olhares de dó, de respeito, de nostalgia. Acho que todos esperavam esse dia já há mais de 33 anos.
O destino, no entanto, reservara outros caminhos.
Tive o privilégio de aprender a ler sob seus olhares e sorrisos. A professora me ensinava que “a casa do Davi era bonita” e ele me estimulava a copiar o Hino Nacional! Mais à frente, a professora ensinava os números e a tabuada de 2 ou 3 e ele gastou suas horas de sono – até a madrugada – para contarmos juntos até 5000!
Um dia entrei na Campesina para aprender música. Parecia-me a coisa mais natural do mundo, afinal meu pai/avô era músico. Como ele gostava de contar sempre: “já toquei muita música!” Enquanto o professor desenhava a semibreve, ele já me falava de divisão de compassos; quando comecei a soprar a clarineta, ele já reclamava da afinação. Lamento não ser músico até hoje porque gosto muito de música, mas acho que poucas pessoas tiveram o privilégio de ter como tutor um músico nato, de ouvido absoluto e visível paixão pelo som. Acho que mais gratificante do que aprender uma música nova era ouvir: “isso, meu filho, muito bem, tá muito bonito!”
Mas que coisa interessante: quando me vi chamado para o pastorado e para a Teologia, o tempo esgotou-se para música. Meu avô nunca reclamou. Ao invés disso? Foi para a Igreja comigo. Cantávamos, orávamos e líamos a Bíblia juntos.
Quando me formei – e que bom que ele estava lá para ver – ele dizia assim: “meu filho, quer dizer, pastor ...!” e sorria satisfeito e cheio de orgulho.
Acho que ninguém nunca me entendeu tão bem quanto ele. Nunca me cobrou nada além do que eu podia dar; só fez me estimular! Quando meus filhos chegaram, nada me foi tão marcante quanto vê-los aninhados em seu colo. Quis ensinar a eles a amá-lo também.
Uma vez ouvi uma frase de sua boca que talvez tenha sido a maior lição de vida que já aprendi. Num encontro de oração, eu pedia aos presentes para fazerem orações de gratidão ou de petição a Deus. O primeiro a levantar a voz, desde uma cama, foi ele: “Meu Deus, muito obrigado pela vida que eu tenho!” Depois de mais de 30 anos parado dentro de casa, furtado pela vida, aos 51 anos de idade, do trabalho e da vida pelas calçadas, ele conseguia dizer com gratidão aquelas palavras.
Quem o conheceu sabe que é verdade. Não se tratava de um santo, mas – sem dúvida alguma – que serenidade e tranqüilidade havia naqueles olhos já cegos nos últimos anos.
Horas antes dele nos deixar, eu estive ao seu lado no leito de morte. Toquei-lhe o rosto e lhe perguntei baixinho: “Vovô, é Kiko, como o senhor está?”, ao que ele, como sempre, me retornou: “Tudo bem, graças a Deus!” Uma lágrima queria me escapar e eu insisti com ele: “Feche os olhos, tente descansar”; ele, serena e bravamente, balbuciou: “Amém”.
Hoje é um dia diferente porque o que sempre intui seria passageiro passou. Há uma presença diferente. A presença da ausência. Essa não será passageira. Sempre estará – sorrateira – presente. Como o poeta decretou: “Saudade é ser, depois de ter!”
Como despedida, velamos sua última presença – de rosto tranquilo e olhos descansados – na sede da Sociedade Musical Campesina Friburguense e na sede da Sociedade Musical 8 de Dezembro (em Duas Barras), suas grandes paixões. Foi bom revê-lo nas fotografias antigas dependuradas pelas paredes que por tanto tempo ouviram seu piston. Meu primo – o único neto dele que herdou o talento para o trompete – solou a “Estrela de Friburgo”, polca que ele tanto amava tocar. Choramos e oramos juntos.
Eu quero me despedir do meu pai/avô. Dizer-lhe que foi a pessoa mais importante de quem até hoje me despedi. Dele, ficam comigo as memórias de seus amigos e familiares que sempre testemunharam sua retidão e integridade de caráter e, especialmente, sua serena forma de lidar com a vida e seu sofrimento.
- Vá em paz, vovô. Adeus.