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Foto do escritorRicardo Lengruber

Adeus (a propósito da morte de meu avô)


Domingo, dia 18 de novembro de 2012, foi um dia diferente. Não posso dizer que tenha sido triste, tampouco alegre. Foi diferente porque inaugurou-se uma presença nova.

Desde que nasci, intuitivamente, imaginava esse dia. Não me lembro concretamente do Sr. Beethoven Wermelinger Lengruber, meu avô, ainda trabalhando e tocando piston, cuidando do carro e da casa. Mas acho que ainda sinto seu toque amável no rosto do neto recém nascido.

Algumas memórias, às vezes, me pegam de surpresa: lembro-me, por exemplo, de um dia ensolarado em que uma mão forte abria pequenas covas e eu deixava cair sementes. Sei que fazem a sombra de quem chega ao sítio “Macaco”. São os ciprestes que “meu neto me ajudou a plantar!”.

Vejo com estanha clareza uma viagem de caminhão. A Mercedez 608 estava ainda nova, quando fomos juntos comprar uma égua! O medo me possuía com tanta presença que a única segurança era tê-lo ao meu lado distraindo-me até a chegada ao destino.

Do que me lembro com nitidez foi o dia em que parou um carro estranho à porta do sobrado e homens diferentes entraram com uma maca e puseram sobre a cama do quarto um homem diferente.

Tive medo de entrar lá porque não se parecia com aquele jovial avô que trazia sempre um chocolate no bolso. Não era o mesmo que, agachado ao chão, me acompanhava nas primeiras aulas da auto escola numa motoca barulhenta. Não era o mesmo sorriso do dia que me trouxe uma cachorrinha de presente.

Era uma pessoa diferente. Estava debilitado; olhos fechados e corpo retorcido.

Entretanto, o medo foi dando espaço à curiosidade e fui chegando mais perto. Até que me vi, novamente, aconchegado ao seu lado, deitado por entre suas cobertas, chamando-o de “pai” e ouvindo palavras que nunca deixaram de ecoar uma satisfação inigualável: “esse é o filho querido do pai”.

Os anos foram passando e fui acompanhando aquela nova vida daquele jovem homem que o destino fizera velho de um dia para o outro. Cada visita que nossa casa recebia trazia uma estória diferente. Olhares de dó, de respeito, de nostalgia. Acho que todos esperavam esse dia já há mais de 33 anos.

O destino, no entanto, reservara outros caminhos.

Tive o privilégio de aprender a ler sob seus olhares e sorrisos. A professora me ensinava que “a casa do Davi era bonita” e ele me estimulava a copiar o Hino Nacional! Mais à frente, a professora ensinava os números e a tabuada de 2 ou 3 e ele gastou suas horas de sono – até a madrugada – para contarmos juntos até 5000!

Um dia entrei na Campesina para aprender música. Parecia-me a coisa mais natural do mundo, afinal meu pai/avô era músico. Como ele gostava de contar sempre: “já toquei muita música!” Enquanto o professor desenhava a semibreve, ele já me falava de divisão de compassos; quando comecei a soprar a clarineta, ele já reclamava da afinação. Lamento não ser músico até hoje porque gosto muito de música, mas acho que poucas pessoas tiveram o privilégio de ter como tutor um músico nato, de ouvido absoluto e visível paixão pelo som. Acho que mais gratificante do que aprender uma música nova era ouvir: “isso, meu filho, muito bem, tá muito bonito!”

Mas que coisa interessante: quando me vi chamado para o pastorado e para a Teologia, o tempo esgotou-se para música. Meu avô nunca reclamou. Ao invés disso? Foi para a Igreja comigo. Cantávamos, orávamos e líamos a Bíblia juntos.

Quando me formei – e que bom que ele estava lá para ver – ele dizia assim: “meu filho, quer dizer, pastor ...!” e sorria satisfeito e cheio de orgulho.

Acho que ninguém nunca me entendeu tão bem quanto ele. Nunca me cobrou nada além do que eu podia dar; só fez me estimular! Quando meus filhos chegaram, nada me foi tão marcante quanto vê-los aninhados em seu colo. Quis ensinar a eles a amá-lo também.

Uma vez ouvi uma frase de sua boca que talvez tenha sido a maior lição de vida que já aprendi. Num encontro de oração, eu pedia aos presentes para fazerem orações de gratidão ou de petição a Deus. O primeiro a levantar a voz, desde uma cama, foi ele: “Meu Deus, muito obrigado pela vida que eu tenho!” Depois de mais de 30 anos parado dentro de casa, furtado pela vida, aos 51 anos de idade, do trabalho e da vida pelas calçadas, ele conseguia dizer com gratidão aquelas palavras.

Quem o conheceu sabe que é verdade. Não se tratava de um santo, mas – sem dúvida alguma – que serenidade e tranqüilidade havia naqueles olhos já cegos nos últimos anos.

Horas antes dele nos deixar, eu estive ao seu lado no leito de morte. Toquei-lhe o rosto e lhe perguntei baixinho: “Vovô, é Kiko, como o senhor está?”, ao que ele, como sempre, me retornou: “Tudo bem, graças a Deus!” Uma lágrima queria me escapar e eu insisti com ele: “Feche os olhos, tente descansar”; ele, serena e bravamente, balbuciou: “Amém”.

Hoje é um dia diferente porque o que sempre intui seria passageiro passou. Há uma presença diferente. A presença da ausência. Essa não será passageira. Sempre estará – sorrateira – presente. Como o poeta decretou: “Saudade é ser, depois de ter!”

Como despedida, velamos sua última presença – de rosto tranquilo e olhos descansados – na sede da Sociedade Musical Campesina Friburguense e na sede da Sociedade Musical 8 de Dezembro (em Duas Barras), suas grandes paixões. Foi bom revê-lo nas fotografias antigas dependuradas pelas paredes que por tanto tempo ouviram seu piston. Meu primo – o único neto dele que herdou o talento para o trompete – solou a “Estrela de Friburgo”, polca que ele tanto amava tocar. Choramos e oramos juntos.

Eu quero me despedir do meu pai/avô. Dizer-lhe que foi a pessoa mais importante de quem até hoje me despedi. Dele, ficam comigo as memórias de seus amigos e familiares que sempre testemunharam sua retidão e integridade de caráter e, especialmente, sua serena forma de lidar com a vida e seu sofrimento.

- Vá em paz, vovô. Adeus.

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