Há experiências que dependem de muito pouco para serem exploradas ao máximo. Aliás, para algumas, quanto menos, melhor! Embora a Bíblia seja muito extensa e nela haja muitas histórias, a sensação que tenho é que há muito mais no não dito do que nas palavras que o texto contém.
Na manhã daquele primeiro dia da semana, Maria de Magdala despertou de sua madorna e foi correndo ao local onde sepultaram o corpo de Jesus havia menos de dois dias. Talvez tivesse passado o shabat guardando-o como prescrevia a Torah e, muito provavelmente, não conseguira dormir direito aquela noite inteira. Meio sonolenta, mas alimentada por uma esperança inquieta, ela tratou de passar o véu sobre a cabeça e agasalhar-se com panos para sair bem cedo e ir cuidar do seu luto e de sua dor. Posso imaginar a pressa dos passos rumo à esplanada onde estava a gruta na qual depositaram o corpo machucado e morto de Jesus.
As horas que se seguiram ao último suspiro de vida de Jesus devem ter sido muito duras. As esperanças de todos que ao lado dele caminharam por anos estavam dissipadas. Frustração talvez fosse o sentimento coletivo que melhor conseguisse traduzir o semblante daqueles homens e mulheres, pescadores e donas de casa. Uma gente simples, mas profundamente corajosa. Homens pobres, mas ousados; mulheres caladas, mas convencidas pela verdade daquele andarilho galileu.
Não posso supor o que passou a morar no coração daqueles que largaram tudo para seguir a Jesus e, depois uma jornada ousada e arriscada, viram-no sucumbir numa cruz romana, sob os insultos e deboches de uma multidão que exigia: “Crucifica-o!”. Penso que isso deva ser a melhor tradução para a palavra decepção!
Mas a saudade da companhia de Jesus devia estar falando mais alto. Já houve quem nos ensinasse que a saudade é uma espécie de grito que alma emana querendo nos dizer para onde quer voltar. A saudade é a voz da alma; é a alma reclamando por paz! E foi por isso que Maria Madalena voltou ao sepulcro, para ver o corpo marcado do Mestre, mas, acima de tudo, para aplacar um pouco da sua dor viva; aquela dor dos torturados que foram mantidos vivos.
Ao chegar à porta da gruta cedida por José de Arimatéia, Maria se espantou com a ausência do Corpo. Chorou! “Onde puseram o Meu Senhor?”
Naquela mesma manhã, minutos antes, Pedro e um outro discípulo (aquele a quem Jesus amava, diz o Evangelho), já haviam corrido até o sepulcro e tido a mesma decepção. Simplesmente voltaram para casa. Sua desilusão era maior agora; não bastasse a morte violenta e injusta do Mestre, roubaram seu corpo e os deixaram órfãos de Tudo!
O lamento de Madalena, todavia, a fez parar mais delongadamente e lhe permitiu chorar a ausência de Jesus, uma ausência tão absurda que mesmo seu corpo já não estava mais ali para ser cuidado.
Maria, entretanto, ao avistar o Jardineiro, indagou-lhe sobre onde puseram o corpo de seu senhor. O restante da história todos conhecemos: o suposto Jardineiro era o próprio Jesus ressuscitado e, diante da revelação, Maria rejuvenesce o semblante e exclama com a força que vem do mais profundo de sua alma: “Raboni!”, “Meu mestre!”
O que me inquieta é o que fez Maria crer ser aquele o Jardineiro. E, aqui, me permito dar asas à imaginação.
Talvez porque Jesus tivesse despertado do sono daquela noite de alívio e se levantado disposto a recomeçar. As duas noites que se seguiram à Cruz devem ter servido de bálsamo para o corpo torturado de Jesus. A pele deve ter descansado de sua tormenta e o restante do corpo deve ter aproveitado para recobrar um pouco de força.
Como isso tudo ocorreu é o que menos me interessa, mas o surpreendente é que, poeticamente, Jesus se levantou da pedra que o acamava e saiu do sepulcro para cuidar do jardim que provavelmente cercava aquela gruta. Amanheceu cuidando das plantas e, quem sabe, dialogando com elas sobre tudo que havia recentemente experimentado.
Na manhã daquele primeiro Domingo, Jesus voltava ao Éden. Aquele esquecido Jardim onde tudo começara e donde o Homem havia sido expulso agora estava sendo replantado, bem ao lado de onde torturaram um Galileu inocente e cheio de ternura.
O Jardim donde Adão fora expulso agora passava a integrar a terra dos homens. Mesmo a crueza da gruta sepulcral estava, agora, adornada pela jardinagem criativa de um deus que havia encarnado entre nós e que, a partir de agora, havia decidido a não nos abandonar jamais. Estava claro o quanto éramos incapazes de voltar ao Éden. Por isso fez o Éden vir até nós e Ele mesmo se encarregou de plantar as primeiras mudas.
A Páscoa foi um caminho encontrado por Deus, mais uma vez, de recomeçar, mesmo sob a sombra da dor e da desumanidade que foi a morte injusta de um profeta cheio de Deus.
Gostaria de acordar no próximo Domingo de Páscoa, jogar sobre o corpo uma roupa batida, descalçar os pés e pisar sobre a terra úmida do sereno e afagar um pouco as plantas invisíveis a mim diariamente. Talvez me ajudem a ver melhor: sempre dá para recomeçar!