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ricardo@lengruber.com

A fé num Deus que morre


A relação entre religião e violência, por incrível que pareça, sempre foi (e ainda é) muito estreita. Práticas e ideias sobre sacrifícios, por exemplo, estão presentes, direta ou indiretamente, em muitos esquemas religiosos, desde a pré-história.

A chamada história das religiões viu prosperar uma série dessas ideias, mas viu também uma profunda complexificação das famílias religiosas. E, quanto mais sofisticada se torna uma determinada doutrina, mais subliminar fica tal relação com a violência, embora nunca desapareça verdadeiramente.

A Bíblia é um exemplo bastante interessante desse processo. Nas páginas do Antigo Testamento, a Bíblia Hebraica, os episódios narrados ainda guardam memórias profundas de guerra, sangue e viloência. A ideia, por exemplo, de guerra santa é, ainda, um elemento teológico importante nas páginas da literatura religiosa do judaísmo antigo.

Um episódio belíssimo – por incrível que pareça – é a narrativa de Gênesis 22 em que o protagonista da trama, Abraão, é convocado por Deus a subir ao monte e sacrificar seu jovem filho Isaque. Embora o texto vá ganhar outra conotação, Abraão não reluta e não vê nada de errado no pedido da divindade. Como sendo o ato mais natural da vida, Abraão levanta acampamento e segue em direção ao local designado para o ritual.

Há diversas outros textos com essa marca muito evidente. No Salmo 137, há uma passagem escandalosamente curiosa quanto a isso: “Ó cidade de Babilônia, destinada à destruição, feliz aquele que lhe retribuir o mal que você nos fez! Feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar a cabeça contra a rocha!” (Sl. 137, 8-9).

Essa, obviamente, não é a tônica geral do Antigo Testamento, da Tanach. Uma leitura atenta – mesmo que sem pretensões devocionais ou religiosas – pode vislumbrar peças belíssimas de exposição dos dramas humanos em sua mais profunda compreensão e experiência. A leitura desse corpo literário é tão útil à formação da cultura quanto a de qualquer outro grande clássico da literatura universal e brasileira, de Homero e Shakspeare a Frost e Graciliano.

Com o passar do tempo, o Judaísmo viu surgir, desde suas entranhas, aquela que se tornaria a confissão religiosa mais dominante no Ocidente por séculos: o Cristianismo.

Curiosamente, nas ideias germinais dessa nova visão de mundo – ainda muito calcada no semitismo do Antigo Testamento – ressurge com uma força incrível a ideia de sacrifício, sobretudo em textos como a carta aos Hebreus, elencada entre os textos inspirados do Novo Testamento.

Na lida judaica, dia após dia, um sacerdote levita entrava no templo e oferecia sacrifícios de animais para a remissão de pecados, conforme determinava a Torah de Moisés. Para o autor da carta aos Hebreus, o fato é que nenhum desses sacrifícios podia livrá-los do pecado (Hb 9,9). “Porque é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados” (Hb 10,4). A carta aos Hebreus explica como Deus providenciou um sacrifício melhor para a redenção do homem. Deus Pai enviou Seu Filho Jesus para ser o sacrifício pelo pecado. Jesus tomou parte na obra da redenção e tornou-se o sacrifício da expiação, com profundo e total envolvimento. Obedecendo à vontade do Pai, Cristo entregou Seu corpo como uma oferta definitiva, permitindo que o pecado do homem fosse removido (Hb 10, 5-10). A conclusão é óbvia: Deus revogou o primeiro sacrifício, que dependia da morte de animais, para estabelecer o segundo e definitivo sacrifício, que dependia da morte de seu Filho.

Mais do que evidente de que a noção de sacrifício se mantêm intacta no Novo Testamento, os textos acima mostram que ela foi potencializada. Não basta a morte de um animal ou de um filho qualquer, é necessária agora a morte do filho do próprio Deus. E interessante é que tal demanda é anunciada como obra do amor de Deus. Por que Deus amou, então Ele mesmo entregou seu Filho para o sacrifício mortal.

Para a compreensão do homem contemporâneo, entretanto, é, no mínimo, estranha tal afirmação. Na verdade, que Deus é esse que ama e mata seu filho ao mesmo tempo? Beira ao sadismo uma afirmação de tal natureza.

Mas, se se rejeita tal princípio, há que se questionar e construir uma lógica distinta para o episódio, porque, na verdade, Jesus morreu numa cruz e disso não há muitas dúvidas.

O que parece ter ocorrido é que a opção de vida adotada por Jesus foi o que culminou em sua prisão, tortura e morte. De um lado, Jesus foi acusado de blasfemo e condenado pelo Sinédrio (Mc 14, 60-64); por outro, foi acusado pelos romanos de agitador político, e esta foi a principal acusação que o levou a morte de cruz (Lc 23, 2-5; 13-24). Espiritualidade e política estiveram na base de sua morte. Para Jesus, todos somos filhos do mesmo Deus e, portanto, irmãos; de outro turno, esse mesmo Deus, Pai, já reina entre seus filhos. Essas visões interdependentes o fizeram pagar caro.

Deus, tal qual revelado por Jesus, não é uma potestade violenta, mas um Pai de amor gratuito, que não se impõe pela força, antes que quer “misericórdia, e não sacrifício”.

Isso colocado, ainda resta o questionamento sobre a salvação que a teologia mais conservadora afirma ser emanada da morte de Jesus. E, com isso, do valor salvador presente no sofrimento. O fato, porém, é que o sofrimento, considerado em si mesmo, não é salvador. A cruz sozinha nada tem de salvadora; a cruz, pela cruz, não passa de maldição. Salvadora, lida e experimentada a história de Jesus, é toda a sua vida!

O que deveria, isso sim, nos causar perplexidade é o fato de Jesus ter sido assassinado numa cruz. O escândalo diante da cruz de Jesus é parte da fé cristã. A aceitação resignada dela é um desvio sério que tem consequências concretas na histórias das pessoas. Ocorre uma espécie de banalização do sofrimento, da violência e, sobretudo, da dor.

A partir da cruz de Jesus, resta-nos uma profunda revisão na imagem que fazemos de Deus. O Deus revelado na cruz não é um Deus impassível e apático, ao contrário, é Deus-amor que se faz homem, e homem servidor. O Deus revelado na cruz é um Deus solidário com o sofrimento de cada ser humano, um Deus que assume o sofrimento e a morte de Jesus e, inseparavelmente, o sofrimento e a morte de todos os seres humanos. É um Deus que vence o sofrimento e o mal assumindo-os com uma solidariedade e um amor que visam transformar a situação negativa em que o outro se encontra, abrindo portas para um futuro novo, tornando possível de fato a esperança.

Aquilo que parecia a potencialização da violência divina mostrou-se a revelação do caráter mais profundo de Deus: o amor. Na cruz, Deus se mostra um-conosco, apesar das violências desse mundo que construímos.

Vale, por fim, resgatar o, assim chamado, paradoxo de Epicuro: “Deus é onipotente, onisciente e bom! Então o mal não poderia continuar existindo. Para Deus e o mal continuarem existindo ao mesmo tempo é necessário que Deus não tenha uma das três características. Se for onipotente e onisciente, então tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele, ainda assim não o faz. Então Ele não é bom. Se for onipotente e benevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe, e onde o mal está. Então Ele não é onisciente. Se for onisciente e bom, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas isso elimina a possibilidade de ser onipotente, pois se o fosse erradicava o mal. E se Ele não pode erradicar o mal, então por que chamá-lo de Deus?”

A mim me parece que, assim visto, Deus é uma máquina e não o ser humano encarnado em Jesus de Nazaré. Deus – assim creio – não é onipotente e, sim, cheio de amor e ternura; Deus – assim creio – não é onisciente e, sim, conhecedor da dor humana porque em si mesmo experimentou-a radicalmente; Deus – assim creio – não é onipresente e, sim, solidário, presente onde eu estou, na minha dor, não como substituto, mas como pai/irmão que me segura pela mão.

Por isso Ele morreu, porque todos morremos.

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