Não há dúvidas de que nosso tempo é de crise. A questão é como encarar esse momento.
Há os que, pessimistas, fazem apenas alardear números negativos. Contribuem pouco para o debate. E, pior, incentivam extremismos. Não raro, ao lado e junto dos pessimistas, há os que falseiam a realidade. Usam notícias de forma falaciosa; divulgam meias verdades; disseminam boatos.
A complexidade das crises estimula o recrudescimento das ideias. Diante do complicado, é comum que as respostas venham sob a forma de conservadorismo e reacionarismo. São as saídas confortáveis.
É mais fácil ser progressista e “liberal” em tempos de bonança. Na fartura, mesmo os mais intransigentes, tendem a sorrir. Nas “vacas magras”, vence o “meu pirão primeiro” dos situacionistas.
Na economia – e isso não é exclusividade das crises – há, sempre de plantão, os profetas do colapso. Como os mercados são, antes de tudo, fenômenos mais psicológicos que econômicos, há sacerdotes de desgraça que viabilizam ganhos cada vez mais expressivos para grupos cada vez menos volumosos. Em tempos de dificuldades, a receita é apertar – especialmente para os mais pobres.
Aliadas a isso estão as transformações pelas quais o mundo trabalho passa. Profissões antes tidas como perenes foram substituídas pela tal da economia colaborativa e pela automação de setores industriais, por exemplo. Sob essa evidente “crise”, setores políticos e empresariais têm aproveitado e empreendido uma verdadeira devassa nas garantias trabalhistas.
Politicamente, as crises fazem emergir a escória da liderança “social”. Surgem milagrosamente nomes sem qualquer densidade para “representar” a massa dos desinformados (ou informados aos moldes da tal pós-verdade). Isso é próprio das democracias mal formadas.
Os discursos da extrema direita (por vezes, fascistas) são como acalanto para quem perdeu o emprego. De forma “fácil”, elegem um inimigo a ser combatido (a China, os imigrantes etc).
A relação entre política e economia, na crise, faz reaparecer com mais clareza a dimensão religiosa de ambas. Nas duas, o que mais importa é a confiança no futuro. Não se faz negócio sem acreditar, de antemão, que haverá lucro no futuro.
E, diante da “sobrenaturalidade” da vida “profana” da política, é compreensível que se elejam bodes expiatórios e salvadores da pátria. As lideranças políticas emergidas das crises são, via de regra, populistas.
Uns devem ser crucificados. E está claro que, na atualidade brasileira, os condenados são (e ainda serão) os que tiveram a ousadia mínima de tentar incluir a multidão dos invisíveis nesses pouco mais de quinhentos anos de história. A despeito dos gravíssimos crimes (que devem sim ser punidos), o que está em jogo não é corrupção, incompetência ou divergência ideológica. Na mesa, estão duas visões de mundo. E uma deve ser pisoteada custe o que custar.
Outros serão eleitos salvadores. Essa gente que fala o discurso fácil. Que diz o óbvio (não acertado necessariamente) com alguma entonação mais expressiva. Que faz o jogo da propaganda. Encanta para vender – ainda que o que esteja a venda seja tão efêmero quanto água que escorre pelos dedos. (É somente nesses termos que se compreende a eleição do Trump, por exemplo, nos EUA.)
No Brasil, orquestrou-se de repente uma “onda ética” de combate à corrupção para tirar uma presidenta eleita e sobre a qual não se provou nada. Em lugar dela entronizou-se uma quadrilha.
As panelas silenciaram e os jornais calaram. O congresso acomodou-se e o governo nunca empoderou tantos criminosos. Conseguimos piorar o que já não estava bom. Mas as bolsas têm realizado lucros diariamente. E é isso que basta.
Por fim, o judiciário. Esse poder incólume (que gozava de tanto prestígio e tanta isenção) revelou-se desde as entranhas. Dos três poderes do Montesquieu, o que ainda gozava de algum respeito, mostrou-se nada além de uma ferramenta útil.
Não é verdade que a crise seja apenas ética. Tampouco política. É uma crise da democracia em si. É uma crise humana.
(Artigo publicado em Jornal Fórum Século XXI.)