"O pior cego é o que não quer ver ..."
A vida é uma realidade construída. O que nos sucede, pessoal ou coletivamente, está transpassado pelas mediações e interferências culturais, políticas, econômicas etc. A vida não é resultado mecânico de impulsos naturais, genéticos ou psicológicos. Não há, por assim dizer, pré-determinações.
O que chamamos vida - excluídas as questões de natureza orgânica - é uma coleção rede de lentes e laços pelos e com os quais nos relacionamos com os outros e através dos quais significamos o que nos cerca.
O conhecimento - mesmo aquele de origem não formal - é uma das tantas formas de apreensão da realidade. Captação da realidade que gera sentido para a mesma e que outorga identidade.
A vida é uma realidade construída por meio dos tantos processos de apropriação da realidade que empregamos. Uns são claramente conscientes e deliberados. Outros, ao contrário, são inconscientes e, por conta disso, suscetíveis a influências e interferências nem sempre de boa índole.
Ao se voltar para fora de si, o ser humano lança mão de recursos para dar sentido e significado ao seu mundo. Noutras palavras, a identidade está de alguma forma condicionada pelo mundo do lado de fora.
As lentes existem a despeito de se ter consciência ou escolha delas. São intermediadoras da forma como vemos e vivemos.
Lentes são religião, política, moral, família etc. Lentes são decisivas no processo de construção da personalidade e da tomada de decisões. São, inexoravelmente, parte integrante daquilo que somos.
Como tudo que integra a identidade, as lentes devem se permitir sofrer mudanças e se ajustar com os novos cenários que têm diante de si.
O foco é essencial para que o que deve ser visto o seja com a maior claridade possível. Lentes devem ajudar a ver melhor ou permitir que o que não é possível de ser visto a olho nu seja captado por intermédio delas.
Essencial é que se atente dia após dia de modo que as lentes sejam adequadamente calibradas.
Por conta disso tudo, dada a constante instabilidade das lentes e dos cenários, é que se corre o risco de se cometer equívocos especialmente nocivos a forma como vemos e vivemos a realidade.
Há dois especialmente ruins. O primeiro equivoco tem a ver em confundir a lente com a realidade e torna-lá fim em vez de meio. Lentes são modos de apropriação da realidade, mas não devem ser confundidas com a mesma. Quando isso ocorre, há uma profunda diminuição da magnitude da vida e, ao mesmo tempo, um superdimensionamento dos discursos e das idéias em detrimento dos fatos e das pessoas. Sempre que isso se dá afundamos no fundamentalismo.
Fundamentalistas são os discursos que não conseguem ver o que há no derredor. É a postura de quem se sente no centro do mundo e dono da verdade. As religiões são, necessariamente, fundamentalistas, porque sabem-se salvadoras das almas. Mas há fundamentalismos em tudo: de futebol a política, de economia a cultura.
O outro equivoco devastador é não ter a sensibilidade de focar a lente para atender as demandas do que deve ser visto e captado. E aí ocorre a distorção. A realidade vista distorcidamente é pior do que não percebida ou captada fantasiosamente.
A distorção ocorre quando a lente de um tempo é usada noutro e as conclusões dela tiradas são absorvidas ingênua e, talvez, inocentemente.
Palco privilegiado disso são os discursos políticos. Quando idéias muito fortes de um tempo se eternizam como se fossem cabíveis em qualquer cenário. A isso, da-se o nome de anacronismo.
É como se gente da terceira idade ainda se vestisse com a moda dos adolescentes de seu tempo.
O que, curiosamente, não deixa se ser o mesmo fundamentalismo. Só que, nesse pormenor, um fundamentalismo eivado de acusações e rancorosidade.
Talvez esteja aí a raiz de tantos entraves no dialogo e nas negociações.
Há fundamentalistas que se tornam arrogantes e prepotentes, porque se enxergam detentores da verdade. Isso ocorre, contraditoriamente, nos grupos políticos, por exemplo, com os discursos aparentemente mais democráticos e participativos. Sob o manto do participativismo se esconde a mediocridade do imperialismo próprio do fundamentalismo. Tudo pode ser discutido, desde que sempre se chegue a conclusão previamente sabida. É uma espécie de ditadura desse arremedo pobre de democracia.
Há outros que se apaixonaram por tais lentes na adolescência; percebem-nas insuficientes no presente, mas não conseguem romper com a forca de suas amarras. Tornam-se seres divididos e conflitados. Até porque perderão amigos e espaços.
Com mentes fundamentalistas não há espaços para discussão. Suas lentes se tornaram opacas com o tempo e já não são capazes de mediar a compreensão da realidade. Vivem noutro mundo e acreditam nele como se fosse o único possível.
Eis o desafio do nosso tempo: ajustar lentes, focar a realidade, respeitar as identidades.