Quando Gabriel procurava pela casa humilde na cidade de Nazaré, estava apenas culminando um desejo há muito planejado no coração de Deus. Desde que o mundo ainda experimentava sua organização germinal, quando o Criador ainda pincelava os primeiros traços da Natureza e dos seres vivos mais embrionários, a ideia divina já indicava o termo do Cosmo e da História. Porque tudo foi criado por Ele, n´Ele e para Ele!
Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. (Jo 1, 2-3).
Qual arquiteto que planeja uma edificação, o Criador desejava a coroação do Todo com a marca que fosse Ele mesmo. Qual artista que assina com sangue sua tela, ou jardineiro que rega com seu próprio suor a terra ainda fofa pelo trabalho de suas mãos.
Porque n’Ele foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis, (...), por Ele e para Ele tudo foi criado. Ele é anterior a todas as coisas e n’Ele tudo subsiste. (Col 1, 16-17).
As andanças de Gabriel, até se defrontar com a jovem Maria, por outro lado, iniciavam um tempo novo na roda da Vida. A hora havia chegado. O tempo madurado. Não havia motivos para protelar mais. Kairós!
Na mitologia grega, Kairos (καιρός, “o momento certo” ou “oportuno”) é filho de Chronos, é o deus do tempo e das estações. Ao tempo existencial os gregos denominavam Kairos e acreditavam nele para enfrentar ao cruel tirano Chronos.
A História é menos que a sucessão do tempo. A História é a realização do sentido das coisas. Chronos é o relógio que, com corda sempre dada, não pára jamais; Kairós é a presença oportuna, a experiência que dá sentido. O tempo que aceita esperar!
A oportunidade estava posta: o Criador passaria a integrar, de fato e de corpo, sua Criação. Maria era a escolhida, porque bem-aventurada, sabia enxergar anjos e ouvir a voz de Deus. Coragem e ternura nela se amalgamavam!
Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus. Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. (Lc 1,31)
O ventre de Maria gestava uma criança; como todas, uma criança especial e cheia de promessas! Qual criança que brinca, estava ela, a criança do ventre de Maria, se alegrando na espera do Tempo:
O SENHOR me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra. Quando ainda não havia abismos, fui gerada, quando ainda não havia fontes carregadas de águas. Antes que os montes se houvessem assentado, antes dos outeiros, eu fui gerada. Ainda ele não tinha feito a terra, nem os campos, nem o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu, quando traçava o horizonte sobre a face do abismo; Quando firmava as nuvens acima, quando fortificava as fontes do abismo, Quando fixava ao mar o seu termo, para que as águas não traspassassem o seu mando, quando compunha os fundamentos da terra. Então eu estava com ele, e era seu arquiteto; era cada dia as suas delícias, alegrando-me perante ele em todo o tempo; Regozijando-me no seu mundo habitável e enchendo-me de prazer com os filhos dos homens. (Pv 8,22-31)
Quem bem intuiu essa experiência criativa seminal foi o poeta Fernando Pessoa:
Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo que nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os dois com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda. Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas no degrau da porta de casa. Graves, como convém a um DEUS e a um poeta. Como se cada pedra fosse todo o Universo e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair no chão. (Poema do Menino Jesus)
Fato é que Gabriel trazia uma notícia avassaladora: o grande e Todo Poderoso escolhera uma aldeia no canto esquecido do mundo, uma casa pobre de um casal recém casado. Além disso, uma mulher brava que sabia dos desmandos dos grandes:
E a sua misericórdia vai de geração em geração sobre os que o temem. Com o seu braço manifestou poder; dissipou os que eram soberbos nos pensamentos de seus corações; depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes. Aos famintos encheu de bens, e vazios despediu os ricos. (Lc 1, 50-53)
A notícia que Gabriel trazia à casa de José era mais que o resultado positivo para uma gravidez. Gabriel sabia que a vida gerada no ventre era sinal que a Criação não se encerrara naquela semana árdua de trabalho, tampouco no primeiro sábado de descanso. Como uma obra que se completa mais a cada dia novo, sob cada olhar diferente, o Cosmo não fora criado no passado e, com prazo de validade determinado, está a se deteriorar; o Cosmo ainda está em gestação e, desde o ventre criador, evolui e se transfigura dia-a-dia assimilando a imagem do Pai, que é Mãe ao mesmo tempo.
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós. (Jo 1,14).
A palavra geradora de sentido para tudo que há encontrara seu vértice e, revolucionariamente, decidira armar sua tenda entre os homens. “Esvaziou-se” de si mesmo e compreendeu que seu lugar era entre os homens e mulheres concretos da História.
Maria era, agora, o símbolo supremo de que o Cosmo estava mesmo prenhe e prestes a dar à luz!
E aconteceu que, estando eles ali, se cumpriram os dias em que ela havia de dar à luz. E deu à luz a seu filho primogênito, e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem. (Lc 2,6-7)
O nascimento do Menino coroava a palavra dita há tanto tempo. “Haja luz!” (Gn 1,3). “E, vendo eles a estrela, regozijaram-se muito com grande alegria.” (Mt 2,10). A luz brilhou definitivamente sobre a manjedoura de Belém.
Gabriel talvez não soubesse, mas, qual Hermes, trazia uma notícia especialmente nova, renovadora, inovadora!
No leito de Maria e no berço de Jesus (ambos improvisados no lugar do boi, do asno e do jumento) a História encontrava seu sentido mais profundo.
O mundo não é resultado do acaso ou de uma obra pré-determinada, antes desdobramento de um relacionamento amoroso e tortuoso entre pai e filhos. Não é, simplesmente, Natureza; é História, que, dinamicamente, avança e retrocede, ri e chora, oprime e liberta.
Quando José, meio desconcertado e com mãos calejadas pelo formão, auxiliava Maria em suas dores de parto e ajudava o bebê a vir à luz, mesmo sem saber, tirava das entranhas da Terra uma semente nova para a Humanidade. Junto com Maria, toda Criação gemia em dores de parto (Rm 8,22).
Gabriel já podia se ausentar. A estrela permaneceria a iluminar. Anjos, bichos, magos, pastores... todos, cansados, adormeceram. Uma lágrima corria na face de Maria. José, insone, ainda não compreendia tudo.
Era hora de descansar
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é. (Fernando Pessoa)
Boa noite!