Ridicularizar e demonizar os ritos religiosos dos diferentes não é exatamente uma novidade. Sempre houve esse tipo de violência na história. A religião do império da vez sempre se auto-usurpou o título de verdadeira. E sempre se lançou numa ofensiva contra o diferente. A violência simbólica (e a ofensiva contra os símbolos) é uma arma, por vezes, mais potente que as de fogo.
No Brasil, a relação entre o cristianismo do colonizador e as religiões de matrizes indígenas e, depois, africanas, sempre foi marcada por uma mescla de tensão e assimilação. O sincretismo religioso brasileiro é sinal de tolerância, convivência e, ao mesmo tempo, de violação e violência. Caboclos e orixás, para sobreviverem, tiveram que se converter em santos e espíritos, por exemplo.
Com a chegada dos evangélicos, no século XIX, (e apesar de compartilharem de uma mesma matriz cristã), a relação com os católicos foi forjada à base da negação e do ódio. Ser evangélico era sinônimo de ser, antes de qualquer coisa, anticatólico. E, ainda, “anti-qualquer-religião-que- não-fosse-evangélica”. Por isso, tanta obstrução e proibição no jeito de ser evangélico por aqui. Era, no fundo, uma negação da cultura brasileira como um todo.
Os neopentecostais mais recentes - apesar de serem visivelmente subsidiários das simbologias mais profundas da religiosidade popular brasileira - constroem seu discurso na mesma toada de guerra e de combate às expressões afro-brasileiras.
Curiosamente, nas últimas décadas, setores do catolicismo nacional têm se aproximado muito desse jeito de ser evangélico. Não faltam os padres de televisão com discursos muito agressivos e extremamente conservadores. Na mesma esteira do Padre Quevedo que violentamente procurava destruir (com ares de ciência, inclusive) o espiritismo kardecista, recentemente, o padre Fábio de Mello fez considerações muito infelizes e preconceituosas sobre as oferendas religiosas da umbanda.
A mesma intolerância que se vê no dia a dia nacional no que tange a política, por exemplo, se enxerga nas múltiplas experiências religiosas dominantes. Um discurso que incentiva o combate, a guerra, a vitória ao custo da derrota alheira. O que mais se vê é religioso defendendo uso de armas, pena de morte, redução de maioridade penal, negação de direitos fundamentais, boicote às políticas afirmativas. Além, é claro, de chacota com a fé alheia. Numa palavra, tem crescido no Brasil uma religiosidade que, em nome do Evangelho, nega-o sistematicamente.
O sermão do Padre Fabio de Mello - que viralizou por conta de sua deflagrada intolerância e desrespeito com a fé dos que comungam religiões africanas - foi um exemplo a mais nesse cenário absurdo que o país está mergulhado. Além de fazer deboche com a espiritualidade alheia, se esqueceu de que sua própria fé (como a minha também) é repleta de sincretismos e crendices tão questionáveis quanto (a seguir o critério que ele mesmo usou - com o qual, diga-se, eu não concordo).
Apesar de ser uma pessoa culta, ilustrada e de bom trato, o padre caiu na armadilha da fama e da superexposição. E se entregou como um difusor de ideias muito reacionárias. Acabou vítima de ter que “prestar contas” pelo lugar que ocupa numa sociedade ainda muito marcada pela lógica de senhores e escravos. E o fez pelo lado fácil de se fazer isso: negligenciando o outro e incentivando o desrespeito.
É isso que ocorre quando não se toma posição clara na vida. Quando o discurso serve apenas como retórica e não como posicionamento a respeito da vida e em respeito a ela.
Mas, precisa-se reconhecer, o padre foi absolutamente consequente e coerente com valores maiores do evangelho que prega. Veio a público e humildemente pediu perdão pelas bobagens ditas na pregação. Afinal, dizer o que ele disse, às vezes, é ceder às tentações da superexposição. Mas reconhecer o erro e pedir desculpas, é sinal de sabedoria, grandeza e, acima de tudo, de conversão.
O episódio do padre sobre a macumba ajuda a compreender o tipo de sociedade em que vivemos e os tantos desafios que temos pela frente. Preconceito, violência e ódio só podem ser superados por sabedoria, coragem e perdão. Sem isso, não há cristão que seja salvo.
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(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com
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