O trabalho está entre os componentes distintivos da espécie. Diferentes dos animais que estão programados pela natureza a se comportarem de uma determinada forma, os seres humanos agem intelectualmente sobre a natureza e a transformam. É o que se denomina, genericamente, de cultura. Cultura cuja ação transformadora se dá efetivamente o trabalho. Daí o lugar existencial do trabalho na construção da pessoa e da espécie humana. A história da humanidade é, no fim das contas, uma história do trabalho, na medida em que é uma história que se equilibra entre política, economia e mentalidades. Uma narrativa que considera as relações de poder, as forças produtivas e as construções ideológicas. Em outras palavras, a história humana é uma história do trabalho considerado sob sua dimensão de força; seja a força como poder de comando, como poder de criação ou como poder de narrativa. Até o século XIX, as principais correntes filosóficas compreendiam a saga humana basicamente sob uma perspectiva idealista. A partir da lógica de que a realidade é uma construção baseada em ideias subjetivas preconcebidas ou identificados a partir da sua objetividade. A tônica, apesar das profundas distinções entre empirismo e racionalismo, por exemplo, estava numa visão essencialista. Em Marx, e em tudo que representou seu olhar sobre a sociedade, é que a realidade passou a ser considerada sob sua dimensão material, histórica e econômica. Primeiro está a vida, depois a interpretação dela. Primeiro está a história e sua dialética e depois se seguem as teorias explicadoras dos fenômenos. Foi em Marx, portanto, que o trabalho passou a ocupar, assim, um espaço de fundamental importância na compreensão da sociedade. As relações econômicas - dentre as quais as de trabalho são o motor mesmo da construção da riqueza humana - são o ponto central da análise. Não se compreende o ser humano se não se considerar, detidamente, sua condição de trabalhador. O mesmo Marx, todavia, percebeu que as relações econômicas estão forjadas sob forças políticas e sob narrativas ideológicas. Percebeu que as relações de poder nas mais diferentes sociedades estão a serviço da manutenção da riqueza nas mãos de uns graças ao trabalho das mãos de todos os demais. E que a justificação dessa disparidade de acesso à riqueza é justificada permanentemente pelas narrativas ideológicas (da família, da escola e das religiões, por exemplo). Estava posta assim a matriz a partir da qual o mundo contemporâneo seria visto e compreendido: o de que as forças do trabalho humano são utilizadas de modo exploratório. Os avanços tecnológicos experimentados ao longo da história - do arado e da enxada até os satélites e drones - foram, passo a passo, substituindo a força humana em si pelas ferramentas que, em algum sentido, estendiam as capacidades limitadas do indivíduo. A história do trabalho é também uma história da inteligência criativa. E, com isso, século após século, mas especialmente a partir da Revolução Industrial, ocorreu uma ampla expansão da produtividade, da lucratividade e, consequentemente, da exploração. Por isso, também a partir desse momento, intensificaram lutas por direitos humanos e de trabalho. A história dos direitos humanos passa, inexoravelmente, pela história do direito do trabalho. No mundo todo, especialmente a partir da primeira metade do seco XX, a luta por direitos trabalhistas integra essencialmente a pauta dos direitos humanos. A relação entre tecnologia e ideologia é, porém, um capítulo que não pode ser desconsiderado nessa epopeia toda. As promessas de resgate da humanização empreendidas pelas inovações tecnológicas são uma espécie de canto de sereia. Uma pregação centrada na tese de que a vida humana será aperfeiçoada e que as possibilidades (apresentadas como infinitas) das mais recentes tecnologias concederão mais conforto, mais segurança e menos trabalho duro e desumano. A internet, os aplicativos, a inteligência artificial e a robótica prometem uma espécie de céu no mundo do trabalho.
A realidade, contudo, tem se revelado outra. Tem se mostrado um paradoxal retrocesso. Garantias individuais, direitos trabalhistas, dignidade da pessoa e o princípio da isonomia estão sendo relativizados e, pior, condenados apenas a exercícios retóricos sem qualquer densidade e realidade. O discurso de que haveria menos esforço e mais produtividade aliados a mais fruição da vida está se apresentando como talvez o maior engodo desse início de século.
Se o leitor acionar agora seu celular, provavelmente terá em minutos uma pizza (ou qualquer outro item) em casa. Ela será fabricada por um restaurante (ou apenas assada se já tiver sido preparada por um empreendedor individual), será entregue por um desempregado, numa bicicleta alugada, disponibilizada nas ruas por um banco que alardeia a propaganda da sustentabilidade e do qual o cartão de crédito será usado para pagar a pizza, uma vez que já está cadastrado para pagamento rápido no aplicativo. E ainda haverá estrelinhas de avaliação do restaurante, da pizza, do entregador, do veículo e do cliente. O entregador não é funcionário do restaurante, tampouco do banco, muito menos do cliente. Usa a força do próprio corpo para pedalar, submete-se aos riscos do trânsito, paga a locação da bicicleta e, se sofrer um acidente, dependerá de um sistema de saúde público que não consegue se sustentar. Se tiver a bicicleta roubada, quantas horas de aplicativo terá que fazer para pagá-la? E, em qualquer sinistro desse, receberá, seguramente, uma má avaliação.
Essa teia de relações invisibilizadas pelos algoritmos dos aplicativos seguramente será o desafio desse nosso quadrante de tempo na história. A promessa de humanização está se concretizando como a mais absurda e desafiadora desumanização das relações daquele que é o motor da história, da riqueza e da dignidade humana que é o trabalho.
A chamada uberização do trabalho (e da própria vida) alcança os mais diferentes ambientes e âmbitos da experiência humana. Da limpeza de casas e carros aos sites de advocacia e medicina. Das corridas de táxi até as entregas internacionais de encomendas. Jornalistas, professores, engenheiros e costureiras trabalhando sob demanda. Da facção (do setor têxtil e de vestuário) até os Jobs de marketing e cultura.
Na prática, o que há é a velha dominação do homem pelo homem escamoteada pela rede ininteligível de computadores. As maiores e mais prósperas redes de negócios do mundo (nas áreas de produção, de comércio e de serviços) estão aparentemente fragmentadas nos milhares de aplicativos. Na prática, todavia, redesenharam seus modelos de negócio de modo a se descompromissar com o trabalhador.
A tese do empreendedorismo é o apelo (quase religioso) dessa que parece ser a narrativa hegemônica do século XXI, a meritocracia. De uma só vez, consegue desonerar o capitalista e responsabilizar (culpabilizar, inclusive) o trabalhador. Do ponto de vista do detentor dos meios de produção, é a fórmula perfeita: redução de custos, de riscos e de ônus.
A legislação trabalhista parece não dar conta do desafio que está posto. Primeiro porque é fruto de um mundo pré-uber; segundo, porque goza da má fama cuidadosamente esculpida pela ideologia vigente e, por fim, porque é operada por sujeitos que, em regra, pouco ou nada se identificam com os trabalhadores reais que estão entregando suas pizzas no domingo à noite.
O desafio posto, portanto, é menos jurídico e mais ético. Em outras palavras, há colocada para nós uma encruzilhada: ou seguimos o rumo da desumanização ou assumimos a tarefa de reconstrução da sociedade sobre bases novas; em que ciência, tecnologia, direito e educação estão a serviço do ser humano e não o contrário.
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