Na antiga literatura bíblica, havia basicamente dois tipos de profetas. Os que serviam cegamente aos reis e os que, mesmo que eventualmente em suas cortes, os denunciavam. Os primeiros eram os nomeadamente chamados de profetas (nebîim) e os outros, eram conhecidos apenas pelo nome. Seu compromisso era apenas com os valores que tinham como supremos, que os faziam relativizar a tudo e a todos. Quem quiser conhecer um pouco sobre essa dinâmica tensa e densa pode ler 2 Sm 11 e 12. É uma história rica em patifarias, interesses, narcisismo, coragem e denúncia.
Partindo dessa analogia é que acredito que o Brasil não precisa de mais profetas. Essa gente oportunista a serviço do rei. Mas, paradoxalmente, precisa cada vez mais das raras exceções que são os profetas que, mesmo correndo o risco, denunciam as sandices, inescrupulisidades e crimes do rei, dos ministros do rei e seus asseclas.
Quem me conhece sabe que não sou alarmista; procuro, em geral, ser um contemporizador, apesar de ter minhas convicções e meu lugar. Mas, infelizmente, minha visão hoje é que o Brasil está num momento histórico caótico (com tudo que esse termo denota). A sensação é a de um naufrágio.
No que diz respeito à crise de saúde pública, o país avança na confirmação de casos, mesmo testando muito pouco ainda. E acumula, a cada dia, mais e mais casos de mortes. O sistema de saúde, onde ainda não está, em poucos dias, estará colapsado. As ações de governo, em São Paulo, por exemplo, quanto aos serviços de sepultamento, são o símbolo do momento extremo que estamos experimentando.
E, o que é pior, parece não haver, por boa parte da população, uma consciência da gravidade da situação. É claro que a necessidade do trabalho e da renda obrigam as pessoas a saírem de casa e, consequentemente, a se expor (e exporem outros) ao risco e a fazer cada vez mais o vírus circular. Isso é compreensível. O que não o é são os governos que agem muito timidamente na injeção de condições materiais para as pessoas ficarem em casa.
No que tange à economia, que já vinha mal há anos, o problema se intensificou radicalmente com a pandemia. No Brasil e no mundo, as expectativas são de recessão e, em alguns casos, depressão mesmo. Os indicadores (bolsa, dólar, taxas de juros, consumo das famílias, PIB etc.) estão todos demonstrando abertamente que o cenário é devastador. Como sempre, porém, bancos e rentistas ganharão mais; pequenos e vulneráveis perderão tudo.
E no que toca à política nacional, que deveria ser um porto minimamente seguro para a condução em meio a tudo isso, o que temos é a potencialização da crise, a aposta no caos e o incentivo ao ódio. O presidente perde base popular a cada dia; nas redes sociais, campo preferencial da militância política governista, a perda de seguidores e os depoimentos de arrependimentos são agora perceptíveis. Não bastasse, o governo se dissolve internamente como quem se boicota a si mesmo; ministros de primeira hora, e que davam alguma sustentação para o governante, estão sendo removidos (direta ou indiretamente); Mandeta e Moro são os exemplos recentes; Guedes e Tereza Cristina podem ser os próximos. Permanece lá um núcleo ideológico sem qualquer densidade executiva. Quanto aos militares, ainda há uma incógnita no ar. Era tudo que menos precisávamos nessa esquina da história: enfrentar uma pandemia enfurnados numa de nossas piores crises políticas.
Um parêntese merece ser incluído aqui: Moro e Mandeta não são profetas que denunciaram o rei. Foram oportunistas que se valeram do governo para interesses pessoais. São, se não piores, tão nocivos à coletividade quanto o próprio governo. Profetas não abandonam o barco.
Ler as histórias de Jeremias ou Ezequiel ajuda a entender que visão de mundo e análise de conjuntura diferentes não são necessariamente antagonismos intransponíveis. E que é na hora da crise que os homens se distinguem dos meninos. Ler Isaías esclarece que estar no templo (geminado ao palácio, em geral) não significa ser conivente com os reis e sacerdotes. Ler Amós faz compreender que, às vezes, os profetas vêm de fora, de onde menos se espera.
Não nos enganemos: a história carrega consigo uma dose, maior do que gostaríamos que fosse ou admitimos que seja, de irracionalidade. Quando olhamos para trás e, com base nos documentos e nos fatos, organizamos as coisas num discurso bem encadeado, parece que as coisas obedeceram a uma lógica predeterminada. Nossa sedução, portanto, é olhar para o futuro como se as ações (políticas, por exemplo) tivessem uma rota claramente delineada. Isso não existe. O que há, no melhor dos casos, é uma inteligência estratégica que avalia os cenários e reage a eles. Governos e oposição tendem a reagir. O que nos falta, em essência, é planejar e agir.
Parece que o que está havendo hoje é um investimento na despolitização da sociedade. No passado ditatorial brasileiro, isso era feito com a ameaça da prisão, do exílio e da tortura. Hoje é levado à cabo com a polarização dos discursos e dos ânimos. Quanto mais ódio há nas redes e quanto mais antagonismo se edifica entre “nós e eles”, mais espaço se abre para quem efetivamente faz a política acontecer nos bastidores de Brasília. A mídia e a internet funcionam como cortina de fumaça para o que realmente está ocorrendo.
A tarefa de quem deseja cooperar nessa confusão toda é a de, paradoxalmente, acreditar e investir mais em política; em mais política. Não a tradicional (embora necessária) política de disputa do poder, simplesmente. Tampouco a simples (apesar de sua complexidade) análise política. Mas a política como emancipação individual e coletiva. Política como escolha. Política como ética, portanto. Como disputa pelo poder no sentido de, feita uma análise consistente da realidade, buscar promover o bem comum. Isso parece utópico, mas é necessário. Ou pensamos a longo prazo ou nos afundaremos ainda mais. Não há solução para agora. É urgente abandonar o simplismo da reação.
Alargar o pensamento. Fazer escolhas. Assumir posição. Relativizar os personalismos. Insistir na democracia. Lutar pela justiça social. Disputar o poder. Exercê-lo como serviço. Deixá-lo como denúncia. Experimentar a política como meio e ter no ser humano o princípio e o fim.
Apostar na polarização é o único meio que os donos do poder têm de se manterem por lá. Com a imensa circulação de informações que há hoje, só por meio do reforço ao pensamento binário, é que é possível minimizar o surgimento de um pensamento político efetivamente emancipador, justo e inclusivo. Por isso, os donos tradicionais da política, no passado, investiram nas televisões e rádios; hoje, a nova política (situação e oposição) investe nas redes sociais. Lá e cá o que está em voga é a superficialidade e o sensacionalismo.
Quando estava na Escola Dominical, ainda juvenil, uma revista de estudos bíblicos trazia uma historinha bastante elucidativa. Mais ou menos assim: imagine um barco e seus navegantes. Nele, há os que estão apenas indo com as ondas, há os que estão interessados em conduzir o leme, há os que questionam a direção, há os que estão focados nas festas da noite e se ocupam em encerar o convés, há os que cuidam à força da força dos remos, há os que ajustam as velas, há os que servem e há os que são servidos. E há uns poucos - exceções - que, para estraga prazer de toda tripulação, e sem muito serem ouvidos, tidos como loucos, olhando para a quilha na água, anunciam que o barco tem seu casco rompido. E que vai afundar.
Esses eram chamados de profetas.
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